A "cupópia" não nasceu no Cafundó
(*)
Sílvio Vieira de Andrade Filho
No
século XIX, Salvador de Almeida Leite, nascido em 1804, organizou a Fazenda do
Caxambu, em Sarapuí, com a presença de escravos. Em 1872, Salvador de Almeida
Leite fez um testamento fechado em que ele declara ser solteiro e não ter
filhos. Assim, ele dá liberdade a seus escravos bem como lhes deixa a Fazenda
do Caxambu com casa, paiol e engenho de moer cana. Portanto, já havia
libertação de escravos na região de Sorocaba bem antes da Abolição. Na
noite de 21 de janeiro de 1879, falece Salvador. Nos seus inventários de 1879 e
1880, encontra-se o seu testamento que foi cumprido totalmente. Os doze
beneficiários pagaram os impostos como revela um recibo coletivo que se
encontra no inventário de 1880, prova evidente do reconhecimento dos novos
proprietários pelo Governo Imperial. Os ex-escravos tocaram a vida na Fazenda
do Caxambu. Valdomiro, um dos descendentes dos antigos beneficiários, viveu no
Caxambu de 1924 a 1936. Ele afirma que a referida fazenda tinha terra fértil e
muita fartura. O plantio e a colheita eram em forma de mutirões, onde
participavam inclusive mulheres e crianças. Por ocasião de enchentes, o
pessoal fazia colheitas em botes, em meio ao coaxar ensurdecedor de sapos. Quem
participava dos mutirões recebia os produtos da colheita em pagamento, pois lá
não havia dinheiro. Os habitantes da fazenda viviam em ranchinho de sapé e
pescavam muito tabarana, bagre e curimbatá. Na Fazenda do Caxambu, sempre havia
festas e bailes que atraíam pessoas da região como Cascais, Congonhas e
Cafundó. Não faltavam comes e bebes nas danças realizadas sob luz de
lampiões e ao som de tambores e sanfonas.
Foi
na Fazenda do Caxambu que os antigos escravos começaram a falar, no século
XIX, uma fala cheia de palavras africanas que eles chamavam de cupópia. Com os
vários casamentos de pessoas do Cafundó com pessoas do Caxambu, que fica a 6
quilômetros aproximadamente do Cafundó, a cupópia passou a ser falada também
no Cafundó no começo do século XX. Por causa dos laços familiares e de
amizade, alguns caxambuenses e cafundoenses viveram nos dois lugares. A
proximidade das comunidades também ajudava os freqüentes contatos.
No
Cafundó, há duas famílias: uma descendente de Antônia e outra descendente de
Ifigênia. Caetano Manuel de Oliveira, do Caxambu, casou-se com Ifigênia do
Cafundó, dando início ao relacionamento entre as duas comunidades negras. Isto
implica o fato de ser a cupópia cafundoense falada apenas pelos Caetano,
descendentes de Ifigênia. O Cafundó tem uma população de 60 habitantes e
somente 12 são falantes da cupópia. Destes 12 falantes, há quatro dos Pires
que assimilaram a tradição lingüística dos Caetano. Duas filhas de Ifigênia
casaram-se também com dois irmãos do Caxambu.
Hoje
não há mais ninguém dos descendentes no local onde foi a antiga Fazenda
Caxambu. Alguns destes foram definitivamente para o Cafundó. Outros parentes
dos que estão no Cafundó e dotados da mesma tradição cultural africana
destes, na luta pela sobrevivência, estão em Votorantim, em Salto de Pirapora,
em Sorocaba, etc.
Assim,
o patrimônio cultural chamado cupópia representa interesse tanto dos
cafundoenses quanto dos caxambuenses. Quando se reúnem, os falantes da cupópia
caxambuense formam um grupo bem maior que o grupo que está no Cafundó. O
artigo 68 da atual Constituição do Brasil beneficia os que estão morando em
comunidades negras, dando-lhes títulos definitivos de terras.
(*) Sílvio Vieira de Andrade é professor e autor da tese de mestrado “Definido? Uma proposta textual para a descrição do O” (1986) e da tese de doutoramento “Um Estudo Sociolingüístico da Comunidade Negra do Cafundó e de seus Arredores” (1993, Universidade de São Paulo).
Jornal Nossa Terra de Itapetininga, 18-24.10.1997 e Diário de Sorocaba, 21.11.1997
Nota
No Cafundó, Nhô Caetano é chamado, por motivo conhecido por este autor, de Caetano Manuel de Oliveira. No registro de seus filhos no Cartório de Salto de Pirapora que ele mesmo providenciou, ele declara chamar-se Caetano Francisco da Rosa. Caetano declara que ele e sua mulher Antoninha são pais de Jacó, nascido em junho de 1900. Os relatos dão conta de que ele e Antoninha sempre viveram no Caxambu. O próximo filho dele por ele mesmo declarado logo em seguida já é com Ifigênia do Cafundó. Trata-se de Francisca, nascida em 1905. De acordo com os relatos, o casal sempre viveu no Cafundó. A união de Nhô Caetano com Ifigênia marca o início do relacionamento Caxambu-Cafundó que documentalmente está provado que foi no começo do século 20. A "cupópia" cafundoense é também do começo do referido século.
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